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Antes mesmo de entrar em vigor, a atual Lei de Falências já suscitava inúmeros debates na doutrina, a maioria deles relacionados aos dispositivos que regulam o novo instituto da recuperação de empresas. Passados pouco mais de quatro anos desde a sua promulgação, e como decorrência natural de sua aplicação, os debates chegaram aos tribunais.
Um dos temas cuja discussão passou a gerar forte controvérsia no Judiciário diz respeito à interpretação dos parágrafos 4º e 5º do artigo 6º da Lei nº 11.101, de 2005, que tratam da fixação do prazo de suspensão das ações e execuções em face do devedor em recuperação judicial. Preveem os citados parágrafos que, após o decurso do prazo improrrogável de 180 dias, fica restabelecido o direito dos credores de iniciar ou continuar suas ações e execuções, inclusive as de natureza trabalhista, "ainda que o crédito já esteja inscrito no quadro geral de credores".
A redação dessas regras tem dado ensejo a interpretações divergentes entre juízes estaduais e, na grande maioria dos casos, juízes trabalhistas, provocando a suscitação de um considerável número de conflitos de competência ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Em geral, os juízes do trabalho têm interpretado literalmente as previsões de que após o decurso do prazo de 180 dias fica restabelecido o direito dos credores de iniciar ou continuar suas ações e execuções, independentemente de pronunciamento judicial (§4º); e de que as execuções trabalhistas poderão ser normalmente concluídas, ainda que o crédito já esteja inscrito no quadro geral de credores (§5º). Decorridos os 180 dias, a maioria dos juízes trabalhistas tem determinado o prosseguimento das execuções, autorizando a constrição de bens e direitos da empresa mesmo que o seu plano de recuperação judicial já tenha sido aprovado pelos credores.
Ao tomar conhecimento de que seus bens estão sendo executados para a satisfação de créditos incluídos no plano já aprovado, a empresa pede a intervenção do juízo no qual se processa a recuperação, acabando por provocar o suscitamento de conflitos de competência ao STJ. E o que se busca em tais conflitos é definir qual o juízo competente para, transcorrido o prazo de 180 dias de suspensão fixado pela lei, decidir acerca das questões e medidas que atinjam o patrimônio da empresa em recuperação.
A análise dos casos já julgados pelas Primeira e Segunda Seções do Superior Tribunal de Justiça permite concluir que a jurisprudência vem se consolidando no sentido de que, uma vez aprovado e homologado o plano de recuperação judicial, é no juízo onde se processa este pedido que devem ser decididas todas as questões que atinjam bens e direitos da empresa devedora.
No julgamento do Conflito de Competência nº 68.173-SP, por exemplo, em que atuou como relator o excelentíssimo ministro Luis Felipe Salomão, decidiu-se pela competência do juízo da recuperação judicial para decidir acerca do patrimônio da empresa recuperanda, especialmente depois de aprovado o plano de recuperação. O voto condutor do acórdão deixa clara a preferência por uma interpretação sistemática dos parágrafos 4º e 5º do artigo 6º da Lei nº 11.101, de 2005. Naquela oportunidade, destacou-se a preponderância dos princípios da preservação da empresa e da "par conditio creditorum"", além da necessidade de se resguardar o princípio nuclear da recuperação, que é o soerguimento da empresa, conforme estabelece o artigo 47 da lei.
Não resta dúvida de que os valores representados pelos princípios destacados naquele acórdão devem sobrepor-se a qualquer outro que sustente tese favorável às execuções individuais de créditos submetidos ao processo de recuperação. Mas, ainda que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tenha optado de forma bem justificada pela interpretação sistemática dos parágrafos 4º e 5º do artigo 6º da Lei nº 11.101, de 2005, é preciso ponderar que aqueles dispositivos podem e devem ser analisados com especial atenção ao teor do artigo 59 da lei, o qual estabelece que o plano de recuperação judicial implica novação dos créditos anteriores ao pedido, obrigando o devedor e todos os credores a ele sujeitos, ressalvadas as garantias.
As novas condições de pagamento criadas pelo plano aprovado substituem as originais, e, concedida a recuperação judicial, não há mais que se falar em aplicação das partes finais dos parágrafos 4º e 5º do artigo 6º da Lei nº 11.101, de 2005, pois todas as ações e execuções que tiveram seu curso suspenso, desde que tenham por objeto créditos submetidos ao plano, não podem mais ser retomadas em face do devedor em recuperação e devem ser extintas, porque extintos foram os créditos que lhes deram origem.
Esta parece ser a melhor forma de interpretar a norma dentro do critério sistemático adotado pelo STJ, eis que não há como abstrair o efeito jurídico conferido à aprovação do plano de recuperação pela regra do artigo 59. Com a extinção dos créditos submetidos ao processo de recuperação, nem o descumprimento de qualquer das obrigações que substituem as originais daria ao credor o direito de ajuizar ação ou retomar o processo de execução para a sua cobrança, até porque nesse caso se estaria diante de descumprimento de obrigação do plano, que, se ocorrida em até dois anos após a concessão da recuperação, é caso de convolação da recuperação em falência. Por outro lado, considerando que a decisão que concede a recuperação constitui título executivo judicial, de acordo com o § 1º do artigo 59 da Lei nº 11.101, de 2005, no caso de descumprimento de obrigação constante do plano após a sentença de encerramento do processo de recuperação, o credor prejudicado tanto pode pedir a sua execução específica como a decretação da falência do devedor, pretensões estas que devem ser formuladas em processo autônomo perante o mesmo Juízo que processou a recuperação.
José Alexandre Corrêa Meyer é advogado especializado em Direito Empresarial e sócio do escritório Motta, Fernandes Rocha - Advogados