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Nenhum povo dá tanta importância como nós à diferenciação das espécies tributárias. Quantos livros têm sido escritos e quantas inimizades não nasceram dos embates entre tricotomistas (que reconduzem qualquer tributo a imposto, taxa ou contribuição de melhoria) e quinquipartistas (que erigem as contribuições especiais e os empréstimos compulsórios em espécies tributárias autônomas), para citarmos apenas duas das correntes em que se dividem os estudiosos? E quem consegue recensear os critérios arcanos que conduzem à fragmentação de cada uma dessas linhas em seitas também irreconciliáveis (contribuições provocantes e provocadas[1], contribuições autênticas ou meros impostos com receita vinculada, destinação do produto arrecadado na norma de competência ou no mandamento da regra impositiva)?
Enquanto isso, na vida real, a indistinção reina: instituem-se taxas bilionárias, sem nenhum vínculo com o custo da atuação estatal, contribuições são entesouradas para sempre ou exigidas de quem já alcançou o benefício que financiam..., tudo na maior naturalidade, com as bênçãos de juristas ilustres e o beneplácito do Judiciário.
A este tema, que já versamos em coluna anterior (Fisco usa atos de polícia para aumentar taxas –clique aqui para ler), liga-se em parte o debate que hoje se trava a respeito da Lei Complementar 110/2001.
Como se sabe, esta instituiu duas contribuições: a primeira (artigo 1º), de 10% dos depósitos devidos ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço durante a vigência do contrato de trabalho, exigível quando da despedida sem justa causa do empregado; e a segunda (artigo 2º), exigível mensalmente, da ordem de 0,5% da remuneração mensal devida a cada empregado.
Esta última tinha vigência limitada a 60 meses (artigo 2º, parágrafo 2º), tendo expirado em dezembro de 2006[2]. Trata-se agora de definir até quando pode ser exigida a primeira, a que a lei não impôs prazo fixo.
O tema vem sendo tratado em nível legislativo, com a aprovação seguida do veto, este ainda pendente de exame pelo Congresso Nacional, do Projeto de Lei Complementar 200/2012, que extingue a exação a partir de 1º de junho de 2013.
As sucintas razões de veto apoiam-se na suposta ofensa à Lei de Responsabilidade Fiscal, dada a falta de estimativa do impacto orçamentário-financeiro e de indicação das medidas compensatórias, bem como no prejuízo — avaliado em R$ 3 bilhões por ano — a programas sociais e de infraestrutura financiados pelo FGTS, nomeadamente o chamado Minha Casa, Minha Vida.
Temos para nós que a discussão está desfocada, havendo sérias razões constitucionais e legais a apontar para a caducidade do gravame desde fevereiro de 2012, com direito dos contribuintes à recuperação dos valores pagos a partir de então.
De fato, a receita de uma contribuição é — pelo menos em teoria — vinculada à despesa que deu causa à sua instituição[3]. Como, em geral, essas necessidades são perenes (financiamento da educação, da seguridade social, dos sindicatos, das entidades representativas das profissões regulamentadas, da renovação da marinha mercante e da indústria naval, entre tantas outras), não é comum cogitar-se do período de vigência desses tributos.
Aqui, porém, tem-se situação peculiar, já que as contribuições da Lei Complementar 110/2001 foram criadas para cobrir uma despesa específica da União: a recomposição, determinada pelo Supremo Tribunal Federal, das contas vinculadas de FGTS atingidas pelos expurgos inflacionários dos Planos Verão e Collor I[4], rombo então orçado em R$ 42 bilhões.
É o que decorre da Exposição de Motivos do projeto que resultou na sua edição, onde se anota que “a cobertura de um passivo de tamanha magnitude, correspondente a quase 4% do total do produto gerado no país, não é uma tarefa fácil. Uma possibilidade seria que o Tesouro Nacional o assumisse e repassasse ao FGTS o montante de recursos necessários.”
Expostos os inconvenientes macroeconômicos e sociais que viam nessa solução, prosseguem os Ministros da Fazenda e do Trabalho, dirigindo-se ao presidente da República:
Foi exatamente para evitar tais desdobramentos que Vossa Excelência (...) promoveu com as centrais sindicais e confederações patronais que participam do Conselho Curador do FGTS um processo de negociações que viabilizasse o pagamento do montante devido aos trabalhadores.
(...) A proposta daí resultante pode ser resumida da seguinte forma:
- contribuição social devida nos casos de despedida sem justa causa, destinada ao FGTS, de 10% dos depósitos referentes ao Fundo;
- criação de uma contribuição social de 0,5% sobre a folha de salários das empresas não participantes do Simples, destinada ao FGTS (...);
- utilização de parte das disponibilidades hoje existentes no FGTS;
- deságio de 10% a 15%, concedido pelos trabalhadores com complementos de atualização monetária cujos valores estejam acima de R$ 1.000,00;
- contrapartida do Tesouro Nacional correspondente a R$ 6 bilhões.
E finalizam ressaltando que “a urgência solicitada se deve à necessidade de que os recursos das contribuições que ora se propõe criar sejam coletados pelo FGTS no mais breve período de tempo, a fim de que os trabalhadores possam receber a complementação de atualização monetária nos prazos propostos na anexa minuta de projeto de lei complementar”.
A correspondência biunívoca entre as contribuições e a recomposição das contas vinculadas de FGTS reduzidas pelos expurgos vem expressa também no texto da lei, sendo de ressaltar:
a) o artigo 4º, que condiciona o pagamento em favor do trabalhador — a fazer-se até 1º de janeiro de 2007, para os credores das maiores importâncias — à efetiva vigência da segunda contribuição até setembro de 2006 (inciso II) e à subsistência da primeira após esta data (inciso III)[5]; e
b) o artigo 12, que responsabiliza o Tesouro Nacional pelo pagamento das diferenças negativas acaso registradas entre a receita das contribuições e os valores necessários ao cumprimento dos acordos nas datas fixadas.
Implementada a finalidade que a lei se impôs — o que a própria Caixa Econômica Federal, gestora do FGTS, afirma ter ocorrido em fevereiro de 2012 —, a contribuição perde a razão de ser e o supedâneo constitucional, extinguindo-se sem a necessidade de revogação. O direcionamento de sua receita para outras finalidades equivale à criação de nova contribuição — pois, como dito, a destinação do produto arrecadado é da essência de seu regime jurídico —, o que não pode fazer-se sem aprovação de nova lei, com as formalidades e as consequências daí advindas (inclusive o respeito à anterioridade).
Em rigor, a conclusão independe do mergulho na infinita complexidade do regime constitucional das contribuições, satisfazendo-se com razões de nível legal. Basta lembrar, com Serpa Lopes[6], que “de dois modos a lei pode ter existência temporária: a) quando traz, preordenada, a data da expiração de sua vigência; b) quando se consuma o seu próprio escopo ou objeto...”, sendo do último tipo o artigo 1º da Lei Complementar 110/2001 (e do primeiro o artigo 2º, como é evidente).
O déficit no patrimônio do FGTS foi a circunstância, referida na lei[7], a cujo específico enfrentamento esta se voltou, e não mero fato acidental que inspirou a instauração do processo legislativo — encaixando-se “no primeiro caso” em que, leciona Carlos Maximiliano[8], “os dispositivos extinguem-se com as circunstâncias que lhes deram vida”.
Descabido, portanto, falar-se em mensuração do impacto orçamentário e em medidas compensatórias da perda de arrecadação, porque esta veio de par com a extinção da despesa correspondente.
Não se trata aqui de propor a judicialização da política, mas o seu exato oposto: a despolitização de debate que pode e deve ser dirimido pelo Judiciário, à luz unicamente da boa técnica jurídica.
Esta coluna, mais do que as anteriores feita em horas insones, vai para o meu pequeno Rafael, em homenagem ao seu quinto dia de vida.