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15/7/2024 - Homens e adolescentes que trabalhavam mais de 12 horas por dia, alojados em barracões cobertos de plástico e palha, aglomerados em redes para dormir. Banheiro não existia. A água para higiene pessoal e consumo era a mesma dos animais. Eram cidadãos brasileiros recrutados para o trabalho rural com a promessa de salários atraentes e a ilusão de uma vida digna.
Ao chegarem à fazenda, eram informados de que já estavam devendo as despesas de transporte, alimentação e alojamento - a chamada servidão por dívida. Vigilância armada, violência física e ameaças eram parte da rotina de trabalho.
Essa história de violação de direitos humanos que, com o conhecimento de autoridades brasileiras, perdurou por mais de dez anos, é o tema da segunda reportagem da série especial “Violação de direitos humanos e o Brasil no banco dos réus”, em que o TST aborda processos em que a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) reconheceu a responsabilidade do Brasil em relação a direitos de trabalhadores.
Ela será dividida em duas partes. Na primeira, o foco é a série de omissões que levou o caso à corte internacional e à condenação do Brasil. A segunda parte trará o relato de vítimas e a reação das instituições brasileiras a partir da responsabilização do Estado.
Primeiro caso de trabalho forçado
O local em que se passa a história é a Fazenda Brasil Verde, em Sapucaia, no sul do Pará. Entre 1989 e 2002, mais de 300 pessoas vítimas de trabalho análogo ao escravo foram identificadas lá. Somente entre 1997 e 2000, o Grupo Móvel do Ministério do Trabalho e Emprego resgatou 128.
A propriedade, voltada para a criação de gado, pertencia, na época, a João Luiz Quagliato Neto, que, com três irmãos, comanda o Grupo Quagliato.
O caso foi o primeiro julgado pela Corte IDH relacionado ao artigo 6º, inciso 1º, da Convenção Americana de Direitos Humanos, que diz: “Ninguém deverá ser obrigado a prestar trabalho forçado ou obrigatório, sendo proibido o tráfico de mulheres e escravos”. O Brasil foi responsabilizado internacionalmente por uma série de violações.
Primeiras denúncias e morosidade do Estado
As denúncias começaram a vir à tona em 1988, exatos 100 anos após a Lei Áurea, que aboliu formalmente a escravidão no Brasil. Naquele ano, familiares de dois adolescentes que haviam desaparecido após serem recrutados para trabalhar na fazenda procuraram a Comissão Pastoral da Terra (CPT) em busca de ajuda. O relatório da visita dos agentes da Polícia Federal (PF) à fazenda apontou violações trabalhistas e revelou que alguns trabalhadores fugiam em razão das dívidas, mas concluiu que eles não eram proibidos de sair da propriedade.
No ano seguinte, a CPT denunciou o caso ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, em Brasília, e, em 1992, ao Ministério Público Federal. De 1992 a 1996, as respostas dos órgãos indicavam insuficiência de provas e prescrição dos crimes.
A partir de 1995, o Estado brasileiro reconheceu a existência do trabalho escravo e passou a tomar medidas para combatê-lo. Entre elas estava a criação do Grupo Interministerial para Erradicar o Trabalho Forçado (Gertraf) e do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, coordenados pelo Ministério do Trabalho e Emprego, que atuava em zonas rurais para investigar denúncias.
Fiscalizações identificam trabalho escravo
Em 1996, uma fiscalização do Grupo Móvel localizou 78 trabalhadores sem registro e uma série de irregularidades na Fazenda Brasil Verde. Mas as violações continuaram.
Em 1997, dois trabalhadores - José da Costa Oliveira e José Ferreira dos Santos - conseguiram fugir e denunciaram o caso à Polícia Federal. Nova ação do Grupo Móvel resgatou 81 pessoas. Os fiscais identificaram barracões cobertos de plástico e palha, trabalhadores doentes e sem assistência médica, falta de condições de higiene e água imprópria para o consumo. Eles também eram ameaçados e proibidos de deixar o local.
Carne utilizada para alimentar trabalhadores ficava exposta ao ar livre. Foto: Divulgação/CPT
A despeito de todas as ações na fazenda (em 1989, 1993, 1996 e 1997), a Brasil Verde continuou a funcionar durante toda a década de 1990, reforçando a omissão e a inércia do Estado brasileiro diante da violação à dignidade humana.
Empurra-empurra na Justiça
Um dos aspectos dessa omissão foi o empurra-empurra sobre a competência para o julgamento das ações penais contra o proprietário da fazenda, João Luiz Quagliato Neto, o gerente, Antônio Alves Vieira, e o “gato” - recrutador dos trabalhadores - Raimundo Alves da Rocha.
Em 1998, o Ministério Público Federal apresentou a primeira denúncia. Em 1999, a Justiça Federal autorizou a suspensão condicional do processo penal contra o proprietário, que passou a ter apenas de entregar seis cestas básicas a uma entidade beneficente de Ourinhos (SP), cidade de origem da família.
Em 2001, o juiz federal vinculado à causa declarou-se incompetente para julgá-la, e o caso foi para Justiça Estadual, que, em 2004, fez o mesmo. Em 2007, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que a competência era da Justiça Federal, mas, no ano seguinte, a ação penal foi extinta em razão da prescrição dos crimes. Além disso, ao declarar a prescrição, a decisão registra que as provas eram “inúteis” para a instrução penal.
Nova fiscalização, novo flagrante, novo processo, novo empurra-empurra
Em março de 2000, dois jovens trabalhadores também conseguiram fugir da fazenda. Ao tentarem denunciar o caso, porém, o atendimento foi negado pela Polícia Civil em Marabá - pois era Carnaval, e o delegado não estava de plantão, conforme relata a sentença da Corte IDH. Eles vagaram por dois dias pelas ruas da cidade e foram à Polícia Federal, onde foram orientados a procurar a Comissão Pastoral da Terra.
A denúncia motivou nova fiscalização do Ministério do Trabalho. Mais de 80 pessoas, incluindo adolescentes, foram encontradas em condições degradantes, submetidas a jornada superior a 12h, com apenas meia hora para almoço. Os fiscais também constataram casos de agressão física, ameaças de morte, vigilância armada, retenção da carteira de trabalho e assinatura de contratos em branco pelos trabalhadores.
Uma nova ação penal foi ajuizada e, mais uma vez, a Justiça Federal se declarou incompetente. Na Justiça Estadual, não se sabe o que ocorreu. “O Estado informou à Corte que não existia informação sobre o que teria ocorrido com este processo e que não havia podido localizar cópias dos autos da investigação”, destaca a Corte IDH na sentença.
Na Justiça do Trabalho, o caso chegou apenas em 2000, com uma ação civil pública movida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) contra o proprietário da fazenda. Em audiência de conciliação, ele se comprometeu a não permitir mais a prática e a melhorar as condições no local. Nos dois anos seguintes, os fiscais indicaram que as medidas estavam sendo cumpridas.
Vítima fica em situação vexatória
“A pessoa escravizada vive uma situação vexatória em que claramente não consegue exercer seu direito de cidadania básico, que é o de exigir que o Poder Judiciário lhe assegure condições de trabalho decentes e a remuneração justa pelo trabalho prestado. Isso faz com que a Justiça do Trabalho não seja acionada de imediato”, analisa o ministro Augusto César, do TST, coordenador do Programa de Enfrentamento ao Trabalho Escravo, Tráfico de Pessoas e de Proteção ao Trabalho do Migrante.
Ele observa que, quando as fiscalizações que resultam no resgate de pessoas, a prioridade é tentar regularizar os pagamentos dos salários e das indenizações devidas, além de benefícios sociais e do seguro-desemprego. “Isso, em princípio, retira a urgência da ação trabalhista”.
Caso é denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos
Antes mesmo das decisões da Justiça brasileira sobre o caso, em novembro de 1998, o caso da Fazenda Brasil Verde foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) pela CPT e pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil).
O coordenador da Campanha Nacional da Pastoral da Terra contra o Trabalho Escravo, frei Xavier Plassat, relata que, apesar da prática recorrente no Brasil, o caso da Brasil Verde era emblemático.
“As denúncias só aumentavam junto ao governo brasileiro, mas mesmo assim não surtiram o efeito esperado de responsabilização dos envolvidos e de reparação das vítimas. Foi por essa recorrência e pela ausência de atitude eficaz do Estado e do Judiciário que recorremos à Comissão”, explica.
Responsabilização internacional e recomendações não cumpridas
Em 2011, a CIDH emitiu o Relatório de Admissibilidade e Mérito 169/11, em que responsabilizou o Brasil pela violação de direitos humanos, do direito à integridade física, psíquica e moral e por não coibir a prática da escravidão e da servidão. O relatório contemplou uma série de recomendações a serem implementadas pelo governo no prazo de dois meses - adiado por dez vezes -, que não foram cumpridas.
Primeira condenação internacional
Em 2015, a CIDH submeteu o caso ao julgamento da Corte. Em 2016, os juízes condenaram o Brasil e declararam, pela primeira vez, a responsabilidade internacional de um Estado pela violação do direito de não submissão à escravidão e ao tráfico de escravos, por violação às garantias judiciais de devida diligência e de prazo razoável e por violação à proteção judicial.
A sentença da Corte IDH destaca que o governo tinha conhecimento dessa prática, em específico na Fazenda Brasil Verde, desde 1989. Mesmo assim, não adotou medidas razoáveis para interrompê-la e preveni-la.
Entre as cinco determinações, a Corte estabeleceu que o Brasil deveria reabrir as investigações e os processos penais relacionados aos fatos constatados em março de 2000 para identificar, processar e, se fosse o caso, punir os responsáveis. Também deveria adotar as medidas necessárias para garantir que a prescrição não fosse aplicada ao delito de Direito Internacional de escravidão e suas formas análogas.
A sentença também determinou o pagamento, no prazo de um ano, de indenização por dano imaterial de US$ 40 mil (cerca de R$ 217 mil, atualmente) para cada trabalhador encontrado na Brasil Verde nas fiscalizações de abril de 1997 e de março de 2000.
Cumprimento da sentença
Segundo informações atualizadas da Unidade de Monitoramento e Fiscalização das decisões do Sistema Interamericano de Direitos Humanos do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), essa reparação foi parcialmente cumprida. Nem todas as vítimas puderam receber o que era de seu direito. Nesse caso, soma-se à morosidade do Estado a dificuldade de localização dos trabalhadores ou de seus herdeiros.
Muitos dos pagamentos somente foram possíveis graças à mobilização da Pastoral da Terra. Segundo Frei Xavier, 54 vítimas ainda não foram localizadas para receber as indenizações. “Algumas vivem em residências precárias ou estão em situações de muita vulnerabilidade social”, relata.
Fazendeiro é condenado pela Justiça brasileira após nova ação
Após a sentença da Corte, o Ministério Público Federal apresentou nova denúncia criminal contra o proprietário da fazenda, com base na fiscalização realizada nos anos 2000. Em 2023, ele foi condenado pela Justiça Federal, em primeira instância, a sete anos e seis meses de detenção.
Repercussões da condenação pela Corte IDH
A sentença da corte serviu como um catalisador para a implementação de mudanças. Na esfera penal, a prática passou a ser considerada crime, previsto no artigo 149 do Código Penal, com pena de reclusão de dois a oito anos e multa, além da pena correspondente à violência.
Hoje, o que se espera é que este crime se torne imprescritível, para evitar o arquivamento de muitos processos em andamento.